Por Marcelo Cantelmi
Damasco. Enviado Especial - 19/05/13
Na entrevista para
o Clarin, líder sírio rejeitou a possibilidade de sair de cena como forma de
encerrar a crise. Negou o uso de armas químicas e coloco em dúvidas o número de
70.000 mortos dado pela ONU.
Bashar Al Assad, o homem forte de Síria, possui um
olhar tranquilo que contrasta com o lugar que a história lhe reservou. Ou tal
vez não seja calma porque também parece que seu olhar está aprisionado num
assombro que não acaba. Nesta extensa entrevista, a primeira com a mídia hispana
desde o início da guerra, Assad manteve esse olhar para negar qualquer
possibilidade de renúncia, negar as denúncias de uso de armas químicas e até
questionar o número de 70.000 mortos denunciado pela ONU. A reportagem foi
feita num palácio em Damasco, enquanto se ouvia o som da artilheria e o disparo
dos morteiros à distância.
- Por que a crise
síria tem se prolongado e aprofundado de forma diferente do que aconteceu nos
outros países árabes?
- Múltiplos elementos internos e externos tem
contribuído para aprofundar a crise, o principal é a intervenção estrangeira e
depois porque os cálculos dos países que queriam intervir na Síria foram mal
feitos. Eles pensaram que o plano poderia ser implantado em questão de semanas
ou meses, mas isso não aconteceu, o que tem acontecido é que o povo sírio está
resistindo e vamos continuar resistindo. Para nós se trata da defesa da nossa
pátria.
- Sabe que segundo
a ONU esta guerra já provocou mais de 70.000 mortos?
- Teríamos que perguntar aos que apresentam estas
cifras sobre a credibilidade de suas fontes. Toda morte é horrível, mas muitos
dos mortos são estrangeiros que vieram a assassinar o povo sírio. E também não
podemos esquecer que tem muitos sírios desaparecidos. Qual é o número de sírios
mortos e qual o número dos mortos estrangeiros? Quantos desaparecidos há? Não
podemos dar uma cifra exata. E obviamente essas cifras mudam constantemente
pois os terroristas matam e muitas vezes enterram suas vítimas em valas comuns.
- Descarta que pode
ter havido uso de força excessiva e desproporcional por parte de suas tropas na
repressão?
- Como podemos determinar se houve força excessiva
ou não? Quais seriam os parâmetros? É pouco objetivo falar nesses termos. Cada
um responde de acordo ao tipo de terrorismo que tem que enfrentar. No começo
era terrorismo local, depois começaram a receber cada vez mais apoio
estrangeiro e o tipo de armas que recebiam mudou, eram armas mais sofisticadas.
O debate aqui não é o volume da força utilizada, ou o tipo de armamento, senão
o volume do terrorismo que estamos sofrendo e consequentemente como
devemos reagir.
- Não houve, no
início da crise, a possibilidade de um diálogo para evitar este desenlace?
- No começo da crise as demandas eram reformistas,
mas isso era apenas aparentemente, uma fachada ou camuflagem para que pareça
que se tratava de uma simples questão de reformas. Fizemos as reformas, mudamos
a Constituição, mudamos as leis, acabamos com o estado de emergência e
anunciamos um diálogo com a oposição, mas a cada passo que dávamos mais se
incrementava o terrorismo. A pergunta que cabe é: Qual é a relação entre
terrorismo e reformismo?
- O que responde?
- O terrorismo não pode ser o caminho para as
reformas. Que relação tem um terrorista checheno com as reformas em Síria? Que
relação tem um terrorista vindo do Iraque, do Líbano ou do Afeganistão com as
reformas em Síria? Ultimamente temos registrado 29 nacionalidades diferentes
combatendo em Síria. Qual é a relação entre eles todos e o reformismo interno?
É algo que não tem lógica! Temos feito reformas e temos iniciativa política
para o diálogo. A base para qualquer solução política é o que quer o povo sírio
e isto se rege pelas urnas. Não tem outra forma. Em relação ao terrorismo,
ninguém quer dialogar com o terrorismo. O terrorismo agiu também em EUA e
Europa e nenhum governou dialogou com os terroristas. Se dialoga com forças
políticas, não com terroristas que degolam, matam e usam armas químicas.
- O senhor denuncia
a existência de milícias estrangeiras em Síria mas garantem que há também
combatentes do Hezbollah e do Irã.
- Síria, com seus 23 milhões de habitantes, não
precisa de apoio humano do pais que seja. Temos exército e forças de segurança.
Não precisamos do Irã ou do Hezbollah para isso. Não temos combatentes de fora
de Síria. Tem sim, pessoas aqui do Hezbollah e do Irã mas eles tem vindo ao país
desde antes da crise.
- Entre as reformas
da Constituição que comenta existe uma que contemple a liberdade de imprensa?
- Talvez saiba que
temos uma nova lei de imprensa que foi decretada junto com um pacote de leis...
- Não.Partimos do princípio maior que é o
diálogo entre as forças políticas. Este diálogo conduziria a uma Carta Magna
que exige um referendo popular. Esta Constituição dará maiores liberdades. As
leis serão feitas baseadas na nova Constituição e obviamente inclui liberdade
política e de imprensa. Mas não se pode falar em liberdade de imprensa sem que
exista liberdade política em geral.
- Como avalia a
conferência sobre Síria planejada para finais deste mês por Rússia e EUA?
- Vemos com bons olhos a aproximação
russo-americana e esperamos que isto signifique um encontro internacional para
ajudar aos sírios. Mas não acreditamos que muitos países ocidentais desejem
verdadeiramente uma solução para a Síria. Não acreditamos que as forças que
prestam apoio aos terroristas desejem uma solução. Nós apoiamos esta
aproximação (Rússia-EUA) e a aplaudimos mas devemos ser realistas. Não pode
haver uma solução unilateral em Síria, é preciso de duas partes ao menos.
-São as forças que
o combatem ou as grandes potências que não querem uma solução?
- Na prática essas forças opositoras estão
vinculadas a países estrangeiros e por tanto não tem decisão própria. Vivem do
que é enviado de fora, recebem verbas e fazem o que é decidido por esses
países. Ambos são a mesma coisa e são eles que anunciaram que não desejam
diálogo com o estado sírio, isto foi dito por última vez na semana passada.
- Quando se fala em
diálogo a quem se refere no outro bando?
- Nós optamos pelo diálogo, com quem quera
dialogar, sem exceção. Sempre e quando Síria tenha sua decisão livre e
soberana. Mas isto não inclui os terroristas ou estados que dialogam com
terroristas. Quando se deponham as armas e se acuda ao diálogo não teremos
problemas. Acreditar que uma conferência política vai deter o terrorismo é
irreal.
- Que possibilidade
há de que o diálogo inclua essas forças externas como EUA, por exemplo, que
supostamente apoiam essas pessoas (terroristas)?
-Nós já dizemos, desde o começo, que dialogamos
com qualquer força do pais ou do exterior com a condição de que não empunhem
armas. Essa é a única condição. Não temos outras condições para o diálogo.
Inclusive tem forças que são procurados pela justiça mas optamos por não tomar
nenhuma medida contra ninguém para deixar espaço para o diálogo e ouvir todos
os setores. Será o povo sírio quem vai decidir quem é patriótico e quem não é.
Nunca dissemos que queríamos a solução que fosse conveniente para o governo,
não queremos impor o que nós pensamos como o melhor. Essa solução cabe ao povo
sírio.
-Com relação à
conferência internacional ...
- Para nós, o aspecto básico a tratar em
qualquer conferência internacional é deter o fluxo de dinheiro e de armas a
Síria e deter o envio de terroristas que vem da Turquia com financiamento de
Qatar e outros estados do Golfo como Arabia Saudita. Enquanto existam países
como Qatar e Turquia que não tem interesse em deter a violência na Síria, ou na
busca de uma solução política, o terrorismo continuará.
- Onde coloca
Israel nesta crise?
- Israel apoia diretamente e por duas vias aos
grupos terroristas, presta apoio logístico e os instrui sobre quais devem ser
os locais que devem atacar. É por isso que os terroristas atacaram uma estação
de radar do sistema de defesa antiaérea que detecta qualquer avião que vem de
forma, especialmente desde Israel.
- No caso do
diálogo avançar é possível falar num calendário para a entrega de armas por
parte da oposição?
- Eles não são uma entidade, são grupos e bandos.
Não são dezenas mas centenas. São uma mistura, cada grupo tem seus líderes. São
milhares e quem pode unificar milhares de pessoas? Esta é a pergunta. Não
podemos falar de um calendário quando fica difícil saber com quem lidamos. Se
eles tivessem uma estrutura unificada então poderíamos dar uma resposta a esta
pergunta.
- Está disposto a sair de cena para conseguir uma
solução definitiva? Está disposto a renunciar?
-Minha permanência ou não, depende do povo sírio.
Não da minha decisão pessoal de ficar ou sair. É uma decisão do povo. Se eles
querem se fica, se não se sai. O tema depende da Constituição, das urnas. Nas
eleições de 2014 o povo decidirá.
- Já considerou a
alternativa de se demitir como condição para o fim do conflito?
-Sou um presidente eleito e é o povo quem decide
minha permanência. Agora, que alguém diga que o presidente sírio tem que sair
porque EUA quer ou os terroristas o exigem é inaceitável.
-Barack Obama tem
dado sinais que não considera provável intervir no seu pais mas seu ministro,
John Kerry, afirmou que qualquer acordo deve incluir sua saída do cargo.
- Não sei se Kerry ou outro tem recebido um
mandato do povo sírio para falar em nome desse povo, sobre quem deve sair ou
ficar. Temos dito reiteradamente que qualquer decisão em relação às reformas em
Síria ou qualquer ação política são decisões sírias e não está permitido nem a
EUA, nem a nenhum outro estado, intervir nelas. Somos um estado independente e
não aceitamos que ninguém nos defina o que devemos fazer, nem EUA, nem ninguém.
Por tanto essa possibilidade a determina o povo sírio. Iremos a eleições,
apresentaremos candidatos e está a possibilidade de vencer ou não. Então não se
pode ir a essa conferência e decidir antecipadamente algo que o povo ainda não
decidiu. Outro aspecto é: o pais está em crise e quando o barco se encontra no
meio de uma tormenta, renunciar significa fugir. Devemos devolver o barco ao
lugar correto e então se decidirão as coisas. Não sou uma pessoa que foge de
suas responsabilidades.
- França,
Inglaterra e o próprio Kerry denunciaram que seu exército usou armas químicas,
gás sarin, contra a população civil...
-Não devemos perder tempo com essas declarações.
As armas químicas são armas de destruição massiva. Estão dizendo que as usamos
em zonas residenciais. Se uma bomba nuclear fosse jogada sob uma cidade e o
saldo fosse de dez ou vinte pessoas por acaso daria para acreditar? Usar armas
químicas em zonas residenciais significa assassinar milhares ou dezenas de
milhares em minutos. Quem poderia esconder algo dessa dimensão?
- A que se deve
essa denúncia, então?
- Este tema das armas químicas surgiu quando os
grupos terroristas em Aleppo e Khan Al-Assal fizeram uso desse tipo de armas.
Recolhemos as provas: o míssil usado e as substâncias químicas. Analisamos
essas substâncias e enviamos uma carta ao Conselho de Segurança da ONU para que
enviaram uma missão para verificar. EUA, França e Inglaterra se viram numa
situação constrangedora e disseram que queriam enviar uma missão que investigue
sobre armas químicas em outras regiões onde eles alegam que foram usadas. Fizeram
isso para não ter que investigar o local onde realmente aconteceu o fato. Um
membro dessa comissão, Carla Ponte, anunciou que foram os terroristas que
usaram as armas químicas mas nem a ONU deu ouvidos a essa declaração.
- Acredita que essa
denúncia poderia abrir caminho para uma intervenção militar em Síria?
- Se este assunto se usa como preliminar para uma
guerra contra Síria é possível. Não esquecemos do que aconteceu no Iraque. Onde
estavam as armas de destruição em massa de Sadam Hussein? Ocidente mente e
falsifica para desatar guerras, é o seu costume. Obviamente qualquer guerra
contra Síria não será fácil, não será uma excursão. Mas não podemos descartar a
possibilidade que nos ataquem e iniciem uma guerra.
- Em que se baseia?
- Fomos bombardeados por Israel. É uma
possibilidade vigente especialmente depois que conseguimos desarticular os
grupos armados em muitas regiões da Síria. Então, esses países encomendaram a
Israel que fizessem isso para elevar a moral dos grupos terroristas. Supomos que
em em algum momento se produzirá algum tipo de intervenção mesmo que seja
limitada.
- Está dizendo que
tem controle sobre a situação mas enquanto conversamos se ouve o estrondo de
artilharia na periferia da cidade.
- O termo controlar ou não controlar se usa quando
se livra uma guerra com um exército estrangeiro. Mas a situação é totalmente
diferente. Os terroristas invadem regiões dispersas e depois fogem para outras
regiões. Se movem em regiões amplas e obviamente nenhum exército no mundo
consegue estar presente em todos os cantos.
- Acredita
realmente que os americanos cooperam com Qatar ou Arabia Saudita para que tome
o poder um regime ultra-islâmico wahabita em Síria?
- A Ocidente só importa que os governos sejam
leais. Eles querem governos servis que façam o que eles querem
independentemente de sua forma. Mas o que aconteceu no Afeganistão refuta isso.
Eles apoiaram o Talibã e o 11-S pagaram um preço altíssimo. O perigo disto é
que os estados wahabitas querem difundir o pensamento extremista em toda a
população e em Síria temos um Islã moderado e resistiremos a isso com todos os
meios.
- Nas eleições
presidenciais de 2014 haverá observadores internacionais e será permitido o
livre acesso da imprensa mundial para cobrir o evento?
- Para ser sincero, o tema dos observadores
internacionais é uma decisão do pais pois uma parte do povo não tolera a ideia
de que exista esse monitoramento por uma questão de soberania nacional. Não
temos confiança em Ocidente para essa tarefa. Se aceitamos que venham observadores
serão de países amigos como Rússia ou China, por exemplo.
-China?
- ...
- Na entrevista que
Clarin fez com o senhor em Buenos Aires, falou com firmeza que rejeitava a
ideia de negar o Holocausto como o faz o Irã. Ainda defende essa posição?
- Por que falar do Holocausto e não do que
acontece na Palestina, ou do milhão e meio de iraquianos assassinados? O
Holocausto é uma questão histórica que precisa de uma visão mais ampla e não
ser usado como uma questão política. Não sou um historiador para determinar o
que é exato nesse tema. As questões históricas dependem de quem as escreve, e
por isso as vezes a história é distorcida.
- Desculpe mas
existe alguma autocrítica que gostaria de formular?
-Não há lógica em fazer autocrítica em
acontecimentos em processo. Se alguém vê um filme não o critica antes deste
terminar. Quando o quadro esteja completo veremos ou que corresponde ou não,
criticar.
- Para terminar,
tem alguma informação sobre o paradeiro dos jornalistas James Foley, um
americano desaparecido há 6 meses aqui e do italiano Domenico Quirico de La
Stampa, perdido há um mês aproximadamente?
- Tem jornalistas que ingressaram a Síria de forma
ilegal, em regiões onde estão ativos os terroristas. Houve alguns casos de
tropas que conseguiram liberar jornalistas que estavam sequestrados. Em todo
caso, quando dispomos de informação sobre qualquer jornalista que ingressou
ilegalmente, nós informamos ao pais em questão. E até o momento não temos
nenhuma informação dos jornalistas dos quais está falando.