5/4/2013,
entrevista à rede Ulusal Kanal, Turquia (38’). Vídeo e entrevista traduzida (do
inglês), in Information Clearing House – http://goo.gl/X9XFl
Ulusal Kanal (1): Senhor
presidente, obrigado por nos receber. Minha primeira pergunta pode soar um
pouco estranha, mas tenho de perguntar. O senhor pode confirmar, por favor, que
está vivo e não deixou a Síria?
Bashar al-Assad, presidente da Síria: Em
primeiro lugar, meus votos de boas vindas à Síria, a você e sua equipe. É um
prazer para mim falar com vocês hoje. E, através de vocês, também com o povo da
Turquia. Você pode ver que estou aqui, plenamente em campo. Não estou escondido
num subterrâneo, como chegaram a dizer. São mentiras que se divulgam, de tempos
em tempos, para abater a moral do povo sírio, que eu estaria vivendo no Irã, ou
num navio de guerra. Vocês podem ver que estou aqui, na Síria, é claro.
Ulusal Kanal(2): Como o senhor sabe, em recente reunião da Liga Árabe, a
cadeira que cabe à representação da Síria foi dada à oposição, o que abriu uma
discussão sobre a sua legitimidade. Significará que a Liga Árabe retirou sua
legitimidade, ao admitir o voto da oposição e pelo fato de que o senhor já não
tem representação na Liga Árabe?
Presidente Bashar al-Assad: Falando
bem francamente, a Liga Árabe, essa sim, não tem qualquer legitimidade. É
organização que representa estados árabes, não os povos árabes. E não tem
qualquer legitimidade já há muitos anos, pelo fato evidente de que os estados
lá representados não manifestam a vontade do povo daqueles estados. Mesmo
quando a Síria ainda participava da Liga Árabe, já sabíamos disso. Portanto, a
Liga Árabe absolutamente não está em posição de ‘dar’ ou ‘retirar’ legitimidade
a seja quem for ou a seja que país for.
Além disso, o movimento que se viu na Liga Árabe não passou de jogo de cena, um
movimento apenas simbólico, para gerar uma ilusão de legitimidade. Nenhuma
legitimidade brota de participar ou não participar de organizações políticas,
internacionais ou quaisquer outras, nem nasce por doação de alguma nação
estrangeira. Na Síria, só o povo sírio é fonte de legitimidade. E só isso nos
interessa. O resto não nos diz respeito nem nos interessa.
Ulusal Kanal (1): Há
medidas, decisões, ações empreendidas contra seu país por alguns países árabes
e também por países ocidentais. Por outro lado, os países BRICSs, que são
observadores da situação síria, tomaram decisões diferentes das que foram
tomadas pelos países árabes e outros países ocidentais. Como o senhor avalia as
atitudes e posições tomadas pelos países BRICSs?
Presidente Bashar al-Assad: Sua
pergunta chama a atenção para um ponto importante. Para começar, o conflito na
Síria não é conflito local, doméstico. Há ativadas dinâmicas externas à Síria,
a maioria das quais visam a redesenhar o mapa dessa região. E há na questão
síria uma disputa também de interesses conflitantes das grandes potências. A criação
do bloco de países chamados países BRICSs implica que os EUA já não são a única
potência no mundo. Hoje, já é impossível ignorar os interesses difusos de
outras forças, quando se tomam decisões na arena internacional.
Os países BRICSs não apoiam o presidente Bashar al-Assad ou o estado sírio:
eles apoiam a estabilidade nessa região. Todos sabem que a agitação na Síria
cria o risco de que forças terroristas assumam o controle na região. Todos
sabem que, se o conflito em que a Síria foi jogada alcançar o ponto de rachar o
país, ou se forças terroristas conseguirem chegar a controlar a Síria, ou no
caso de que aconteçam as duas coisas, o que acontecer aqui imediatamente
contagiará primeiro os países vizinhos, depois, por efeito dominó, chegará a
países em todo o Oriente Médio.
Nesse quadro, os países BRICSs apoiam uma solução política para a Síria, contra
as demais potências ocidentais.
Se se consideram outros líderes árabes que se posicionaram contra a Síria,
sabe-se que não são independentes, em termos políticos, daquelas mesmas
potências ocidentais. São líderes que agem conforme o diktat daquelas potências ocidentais.
Internamente, pessoalmente, é possível que também apoiem uma solução política.
Mas quando o ocidente lhes dá ordens, são obrigados a obedecer. Em termos bem
gerais, essa é a situação, na região e no plano internacional.
Ulusal Kanal(2): Nos dois últimos anos, temos assistido aos conflitos
sobre a Síria e dentro da Síria. Esses conflitos são apoiados, por um lado,
pelos EUA, França, Turquia e alguns regimes do Golfo. Esses regimes dizem que
os grupos dentro da Síria combatem contra o seu governo. E mais de cem países
declararam que o senhor deve deixar o governo. Isso posto, o senhor considera a
possibilidade de deixar o governo e permitir que outro nome o substitua?
Presidente Bashar al-Assad: Sua
pergunta implica que um grande número de países ocidentais, e nossos aliados,
inclusive a Turquia, e muitos países árabes estariam contra essa presidência.
Ao mesmo tempo, sua pergunta implica também [que os grupos internos] também
estariam contra essa presidência. Nada disso explica que a Síria se tenha
mantido firme, já há três anos. Não me incomoda que haja oposição ao meu
governo. Sou presidente eleito pelo povo sírio. Disso se conclui que o presidente
ficar na presidência ou deixar a presidência é uma grave decisão nacional, a
ser tomada, exclusivamente, pelo povo sírio, não por outros estados que digam
que desejam que a presidência fique ou saia. Sejamos francos. Será que todos
esses estados estão preocupados com a Síria ou com o sangue do povo sírio?
A começar pelos EUA, que apoiam há décadas os crimes cometidos por Israel,
desde que Israel foi criada em nossa região. Os EUA cometeram massacres no
Afeganistão e no Iraque, que resultaram em milhões de mortos, feridos e
mutilados. A França e a Grã-Bretanha cometeram massacres na Líbia, sempre com o
apoio dos EUA. O atual governo turco está metido até os joelhos em sangue
sírio. Volto a perguntar: quais desses estados estão preocupados com o sangue
dos sírios?
A questão de se o presidente fica ou sai, é decisão que cabe ao povo sírio.
Nenhum país do mundo tem qualquer coisa a ver com isso.
Ulusal Kanal (1): O senhor
disse que o que está acontecendo na Síria é efeito de apoio que vem do exterior.
Mas estamos em Damasco e se ouve o som de explosões e o som dos bombardeios, em
diferentes distâncias nunca param. Por que isso tudo está acontecendo?
Presidente Bashar al-Assad: A
Síria está cercada por países que estão ajudando terroristas a entrar em
território sírio. Claro. Nem todos os países fazem intencionalmente e sabendo o
que fazem. Por exemplo, o Iraque é contra esse movimento de infiltrar
terroristas em território sírio, mas há circunstâncias que impedem que o estado
tenha pleno controle de todas as fronteiras. No Líbano, a situação é de
divisão: alguns partidos apoiam e outros se opõem à política de mandar
terroristas para dentro do território sírio. A Turquia apoia e hospeda
terroristas em termos oficiais e os está mandando para território sírio. Alguns
grupos terroristas entram na Síria pela Jordânia e não se sabe ainda se com ou
sem o apoio do governo jordaniano. Enquanto perdurar essa ação de contrabandear
terroristas e armas para dentro do território sírio, nós continuaremos a lhes
dar combate. É normal. É guerra, em qualquer sentido da palavra. Não há como
separar os diferentes incidentes de segurança. Só é possível que terroristas
continuem a entrar em território sírio, aos milhares, talvez dezenas de
milhares – é difícil quantificar com precisão –, se recebem apoio externo. E
estão chegando de várias direções. Por isso há combates em várias regiões do
país.
Ulusal Kanal(2): Senhor presidente, o senhor disse que o governo turco
apoia oficialmente e publicamente grupos terroristas, garantindo diferentes
tipos de ajuda e apoio àqueles grupos terroristas. Mas sabe-se que, até bem
recentemente, havia relações amigáveis entre Erdogan e o governo turco, e o
senhor. O que aconteceu, que mudou tanto essa situação?
Presidente Bashar al-Assad: É
possível que Erdogan tenha visto, nos eventos em curso no mundo árabe, uma
oportunidade para prolongar a própria vida política. É a mesma mentalidade da
Fraternidade Muçulmana. Nossa experiência, na Síria, com a Fraternidade
Muçulmana, ao longo de 30 anos, ensina que são um grupo de oportunistas. Usam a
religião para obter vantagens pessoais. Ele [Erdogan] viu que em todos os
países onde houve revoluções, ou golpes de Estado, ou intervenção estrangeira,
a Fraternidade Muçulmana está hoje no poder. Erdogan viu, nisso, uma grande
oportunidade para permanecer no poder, sob diferentes formas, ainda por muitos
e muitos anos. Virou-se contra a Síria, porque viu aqui uma boa oportunidade
para manter-se no poder. De início, tentou interferir em assuntos internos da
Síria.
Já antes da crise, Erdogan estava mais interessado na Fraternidade Muçulmana,
do que nas relações entre Síria e Turquia, muito mais do que no destino da
Síria.
Esse pessoal pensa dessa forma. Dadas algumas circunstâncias, eles sempre
pensam, primeiro, nos próprios interesses pessoais. Como já disse, Erdogan
tentou, primeiro, interferir em assuntos internos da Síria. E depois o governo
turco começou a apoiar publicamente vários grupos terroristas dentro da Síria.
Hoje, estão muito profundamente envolvidos no derramamento de sangue dentro da
Síria. Nesse contexto, as nossas relações deterioraram-se muito gravemente.
Ulusal Kanal (1): Perguntamos
ao senhor Erdogan sobre as relações sírio-turcas. Ele diz que foi franco com o
senhor e lhe fez várias propostas sobre reformas, que o senhor rejeitou. Por
que o senhor não considerou as propostas que lhe foram feitas pelo senhor
Erdogan?
Presidente Bashar al-Assad: Infelizmente,
Erdogan não disse uma palavra franca e confiável desde que essa crise começou.
Nenhuma. E não estou exagerando. As propostas eram muito gerais. Eu disse a ele
que só o povo sírio decidiria quem seria presidente e que sistema de governo
teríamos. Já comentei as propostas de Erdogan, com muito detalhe, em vários
pronunciamentos. Temos de preparar eleições, nas quais os vários grupos
políticos apresentem candidatos. E assim decidiremos qual a melhor via para
prosseguir. Por melhores e mais importantes que fossem as propostas de Erdogan,
em nenhum caso seriam mais importantes ou melhore que eleições para saber o que
o povo quer. O que poderia ser melhor que essa solução? Haverá eleições, e o
que o povo decidir será implementado.
Mas há uma pergunta simples, que vocês deveriam fazer. Se Erdogan continua a
dizer que suas propostas teriam resolvido todos os problemas na Síria, que
relações haveria entre aquelas propostas que eu ouvi e o apoio que ele dá hoje
a grupos terroristas? Hoje, nesse momento, Erdogan está recrutando, entregando
armas, dando dinheiro, garantindo equipamento médico e outros detalhes de apoio
logístico. E abriu a fronteira para que esses grupos entrem na Síria. O que
isso tudo teria a ver com as propostas de Erdogan, que, sim, ouvi atentamente?
Erdogan sabe que, desde o primeiro dia, nós sempre aprovamos qualquer solução
que implicasse diálogo político. Ele sabe. Nós anunciamos que aceitávamos o
diálogo com todos os partidos políticos sírios. Quando nada disso funcionou,
com a presteza que Erdogan precisava que funcionasse, ele mudou de conversa. E
passou imediatamente a armar grupos terroristas. Erdogan mente. Aquelas
propostas serviram-lhe como uma máscara.
Nós sempre aceitamos conselhos e contribuições de qualquer partido, em qualquer
circunstâncias. Mas não aceitamos intervenção em assuntos internos da Síria.
Parece que Erdogan entendeu mal nossa posição. Ele entendeu que as relações
fraternas entre Turquia e Síria permitiriam intervenção em nossos assuntos
internos, com o objetivo de derrubar um governo sírio legítimo. Mas, para mim,
essa situação já estava bem clara, desde os primeiros dias.
Ulusal Kanal (2): Há notícias na imprensa turca, de que há pessoal
dos serviços de segurança envolvidos com em atividades terroristas e ajudando
grupos terroristas, trabalhando para infiltrá-los em território sírio. Alguns
jornais dizem que a Turquia comete crime, encobrindo esse tipo de atividade. O
que o senhor tem a dizer sobre isso?
Presidente Bashar al-Assad: Como
já disse, o atual governo turco não está, de modo algum, contribuindo para pôr
fim à matança do povo sírio. Há quem esteja à espera de que a Síria adote a via
da retaliação. Não o faremos.
Estamos contra o crime de infiltrar terroristas em território sírio, e contra
todos os atos criminosos. Mas entendemos que o povo turco é povo irmão
dos sírios. Em terceiro lugar, retaliação é, precisamente, o que Erdogan
deseja. Ele quer criar um conflito entre o povo turco e o povo sírio, tentando
angariar apoio popular para suas políticas. Está tentando restaurar parte da
popularidade que teve, e já perdeu.
Os sírios não cairemos nessa armadilha. Por dois motivos: por princípios e
porque os interesses sírios estão alinhados com os interesses do povo sírio,
embora não, no momento, com os interesses do atual governo turco. Nenhum
conflito entre o povo sírio e o povo turco jamais servirá a qualquer interesse
dos nossos povos. E só fará complicar ainda mais as coisas. O que fizemos nos
últimos dez, doze anos, desde que o presidente [Ahmet Necdet] Sezer foi eleito, em 2000, foi construir o
debate entre nossos povos, entre árabes e turcos. Agora, o presidente Erdogan
quer pôr a perder tudo o que foi feito. Não cometeremos nenhuma retaliação
contra o povo turco. Para saber, consultem os serviços turcos de inteligência.
Mas, até agora, não capturamos nenhum agente da inteligência ou do exército
turco que estivesse agindo na Síria. Isso não significa que não estejam aqui.
Estão apoiando os grupos terroristas. Os serviços de inteligência da Turquia
estão fornecendo todo o treinamento, todo o equipamento, todas as estruturas de
comunicação – o necessário apoio da imprensa, indispensável – a grupos
terroristas para que se infiltrem em território sírio.
Do que vários terroristas já confessaram, já sabemos que há indivíduos
envolvidos na Turquia. O princípio desse envolvimento está no apoio que o atual
governo turco dá à ação dos grupos terroristas. O fato de que não haja pessoal
da inteligência turca operando dentro da Síria não implica que não estejam
ativos.
Ulusal Kanal (1): Suas
declarações, senhor presidente, são bem claras sobre as políticas turcas. O
ministro de Relações Exteriores da Turquia, Davutoglu, disse que preferiria
renunciar ao cargo, se tivesse de apertar a mão do presidente Bashar al-Assad,
se ele permanecer no poder. O que significa isso, em termos das relações entre
os dois países?
Presidente Bashar al-Assad: Não
posso honrar essa declaração, com alguma resposta. Absolutamente não é o caso.
Essa fala desonra o alto padrão moral do povo turco, que sempre testemunhei em
minhas muitas visitas à Turquia. De minha parte, respeitado o alto padrão moral
do povo sírio, não há o que responder. Minhas relações com Erdogan foram
construídas como pontes entre nossos povos. Se o primeiro-ministro, Erdogan e o
atual governo turco já estão envolvidos na guerra que faz correr sangue sírio,
já não se pode cogitar de pontes, nem pessoais, entre nós, nem entre eles, nem
entre eles e o povo sírio.
Ulusal Kanal (2): Como o
senhor deve ter sabido, quando o presidente Barack Obama esteve em Israel, o
primeiro-ministro Netanyahu pediu desculpas à Turquia, sobre o que houve com o
navio turco que levava ajuda a Gaza. Como o senhor interpreta esses
desenvolvimentos?
Presidente Bashar al-Assad: Há
uma pergunta clara e óbvia, nessa situação. O primeiro-ministro Netanyahu já
era primeiro-ministro quando ocorreu o ataque ao navio turco, há três anos.
Continua no mesmo posto. Por que jamais aceitou pedir desculpas antes, durante
tanto tempo? O que mudou? É o mesmo Erdogan. É o mesmo Netanyahu. A grande
mudança, de lá até hoje, é a situação na Síria. O que aconteceu prova,
precisamente e muito claramente, que há um acordo entre Israel e Turquia,
relacionado à situação síria. Também confirma que Erdogan está agora alinhado
com Israel, trabalhando para agravar cada vez mais a situação na Síria. Nos
últimos anos, Erdogan conseguiu mobilizar a opinião pública turca, como bem
entendeu, contra a Síria. Também nunca desistiu de tentar cravar suas garras no
estado sírio. A Síria continua a defender-se nessa batalha feroz. Erdogan não
teria outro a quem recorrer, se não a Israel, potência ocupante, inimigo de
todos os povos árabes.
Ao mesmo tempo, essas desculpas também ajudam Erdogan a restaurar, pelo menos
em parte, a própria credibilidade, que ele perdeu, na Turquia.
Ulusal Kanal (1): Quero retomar
o que aconteceu em passado recente. Dia 21 de março, reuniram-se Erdogan e [Abdullah] Öcalan [do Partido dos Trabalhadores do
Curdistão (PKK)[1]]. Nessa reunião, discutiram a formação de um novo Oriente
Médio, com árabes, sírios, curdos e turcos. O senhor acompanhou o desenrolar
dessas reuniões e declarações?
Presidente Bashar al-Assad: Por
hora, só temos a informação distribuída pela mídia. Ainda não recebemos os
detalhes dessas conversações, de nenhum dos lados. Já há alguns anos, em todos
os passos adotados para resolver a questão curda, nossa posição declarada
sempre foi aceitar qualquer solução que satisfaça aos curdos e aos turcos,
porque nunca quisemos mais e mais derramamento de sangue na Turquia, que sempre
teria impacto negativo por aqui. Qualquer solução negociada e aceita entre
essas duas partes terá nosso apoio, porque o povo curdo é parte natural do
tecido da região. Não são hóspedes nem imigrados. Vivem aqui há séculos, há
milhares de anos. Mas qualquer solução estável para a questão turco-curda
depende hoje da credibilidade de Erdogan. É homem em quem não confio. Não
cumpre o que promete. Todos os passos que está empreendendo hoje visam
exclusivamente a angariar apoio político para ele mesmo. Aqui, outra vez, cabe
a mesma pergunta óbvia: por que não tomou exatamente a mesma providência, de
negociar com os curdos, há poucos anos? Outra vez a resposta é a mesma: isso,
agora, também está relacionado à situação na Síria. E às eleições na Turquia.
Ulusal Kanal (2): O senhor
disse que resolver a questão turco-curta é tema importante para toda a região.
Podemos ouvir de Vossa Excelência uma opinião mais ampla sobre como resolver
essa questão?
Presidente Bashar al-Assad: Temos
de ser bem claros: nacionalidade é diferente de etnicidade. Vivemos em região
mestiça. O fato de você ser turco não implica que não possa ser curdo ou
armênio, ou de origem árabe. Somos árabes pela cultura e pela língua. A
situação na Turquia é semelhante à situação na Síria. Quando digo “árabe” não
falo de etnia ou raça.
Os dois nacionalismos, o turco e o árabe, mostram o quanto o modelo
nacionalista pode ser civilizado, de inclusão de diferentes. O problema é que
esse conceito, no passado, foi adotado por uma mentalidade de exclusão, de uma
cultura rejeitar ou eliminar a outra. Eu entendo que um dos aspectos mais belos
dessa região é a diversidade. E um dos maiores perigos que corremos é não ver
essa diversidade como fator de enriquecimento e de empoderamento. Mas em vez
disso, temos assistido a pessoas que convocam forças e interesses de fora, para
nos lançar uns contra os outros e criar conflitos por aqui. Foi o que se viu
acontecer no início do século passado, quando começaram os conflitos entre
turcos e árabes, nos dias finais do Império Otomano.
Muitos grupos nacionalistas árabes quiseram que diferentes nacionalismos árabes
florescessem dentro do Império Otomano. Mas isso gerou conflitos e levou a
erros de todos os lados, o que facilitou a intervenção por atores estrangeiros.
Hoje, temos de
ver a situação com interesse em promover a inclusão de todos. Somos feitos do
mesmo tecido diverso, entretecidos de diferentes cores.
Ulusal Kanal (2): Senhor
presidente, uma das questões mais difíceis atualmente em discussão na Turquia é
a questão do PKK. Há
discussões sobre organizações que estariam operando na Síria e teriam ligações
com o PKK, que teria forte influência sobre aquelas organizações. O que se diz
é que essas organizações estariam muito interessadas em criar um vácuo militar
no norte da Síria, a ser preenchido por aquelas organizações. Como o senhor,
presidente, lê essas informações?
Presidente Bashar
al-Assad: Quando há caos em qualquer estado, como
é o caso hoje na Síria, sempre aparecem muitos grupos interessados em preencher
os vácuos. Às vezes, são gangues, interessados só em matar e roubar. Às vezes
são grupos políticos, às vezes são partidos, com programa político. Existem na
Síria, na Turquia, no Iraque, em outros locais. Não se pode generalizar, e
incluir todos os curdos no que é agenda só de pequenos grupos. Muitos curdos
são patriotas, querem viver na Síria. A emergência de alguns casos específicos
não é motivo para que generalizemos, como se houvesse situação homogênea. A
separação depende de outro tipo de ambiente. Tem de haver amplo apoio popular.
Ou a luta é feita com interessados externos. Entre curdos sírios e curdos
turcos, as circunstâncias são muito diferentes. No momento, essa questão não me
preocupa.
Ulusal Kanal (1): Senhor
presidente, temos agora uma questão muito importante. Desde o início dos
eventos na Síria, alguns partidos e pesquisadores insistem em discutir outro
projeto, envolvendo a superação dos estados no norte da Síria, norte do Iraque,
sul e leste da Turquia, separando essas regiões de seus respectivos estados
centrais. O senhor acha que há o risco de o norte da Síria acabar por superar o
estado central?
Presidente Bashar al-Assad: Como
eu já disse, as atuais circunstâncias na Síria não sugerem qualquer movimento
nessa direção, sobretudo se se considera a opinião pública em geral. O povo
sírio rejeita completamente qualquer ideia de separação do estado sírio. Nenhum
estado soberano aceitaria que partes do território sejam cortadas do território
principal. Essa posição é categoricamente inaceitável e absolutamente
indiscutível.
Ulusal Kanal (1): Baseados
em nossas perguntas e suas respostas: parece haver um plano bem claro,
construído por países ocidentais, em cooperação e coordenação com alguns países
da região, para criar um Grande Curdistão, que seria formado de uma parte do
norte do Iraque, leste do Irã, norte da Síria, e sul e leste da Turquia.
Parecem decididos a alcançar esse objetivo. Estamos andando nessa direção?
Presidente Bashar al-Assad: Não
acredito que esses quatro países, Iraque, Síria, Irã e Turquia, subscreveriam
essa proposta. Estados independentes, hoje, trabalham pela integração, não pela
subdivisão e separação. Infelizmente, nossa região é uma exceção, e sinal de
atraso. Hoje, o que se vê é a formação de grandes blocos de países. Os BRICSs
são bom exemplo. Os estados buscam unir-se em blocos maiores, porque isso é uma
exigência dos tempos que vivemos. Por que, então, em nossa região, andaríamos
na direção contrária, buscando a segmentação? O que impediria que pessoas de
diferentes nacionalidades, religião, etnia, vivam juntas?
Se aceitarmos a noção da separação, teremos de viver com as consequências, a
saber: fragmentação em vários pequenos miniestados baseados em etnicidade,
reforçando as diferenças. Assim se cria uma situação extremamente perigosa, que
só gerará mais guerras no futuro. Por isso não me parece que essa proposta de
divisão seja proposta a considerar, nem que seja proposta séria.
Esses quatro estados que a proposta divisionista considera deveriam, isso sim,
dedicar-se a fazer com que todos os seus cidadãos sintam-se como cidadãos de
primeira classe. Todos com direitos e acesso igual aos direitos. A solução, por
essa via é clara e simples. Mas se, por outro lado, há cidadãos que se sentem
humilhados, é normal que pensem em separação.
Ulusal Kanal (2): Senhor presidente, o senhor teve um projeto
interessante. O senhor falava da construção de meios para a unificação política
e econômica dos cinco ‘curdistões’ [orig. Five
“Cs”]. Pode falar ao público turco sobre como todos poderíamos nos
beneficiar do seu projeto?
Presidente Bashar al-Assad: É
exatamente o que já disse, quando falei sobre a exigência, no mundo
contemporâneo, de integração e unificação. A quem interessaria criar mais um
estado, à maneira dos estados que existiam antigamente, em vastos impérios
territoriais? Hoje é possível nos unirmos nós mesmos, com vistas aos nossos
próprios objetivos gerais de todo o Oriente Médio. Por exemplo, todos podemos
construir estradas, e diferentes vias para transporte terrestre. Vias regionais
de fornecimento de água, gás, petróleo, outras formas de energia. Criar redes
que unam nossos países, nessa região crucialmente estratégica do mundo que se
designa como “os cinco curdistões”. Todos os países devem dirigir investimentos
para essa região. Assim se fortaleceriam todos os países e também os vários
nacionais de etnia curda.
Essa visão exige determinação, vontade e capacidade para tomar decisões
independentes na nossa região, sobretudo se muitos grandes estados ocidentais
não têm interesse algum em qualquer projeto que vise a beneficiar os cidadãos
da nossa região, a fortalecer a região. Não têm qualquer interesse em promover
a estabilização do Oriente Médio.
Não me parece que, hoje, haja condições objetivas para trabalhar na direção
desse nosso projeto. Há muitos problemas na Síria, no Líbano, no Iraque.
Praticamente todos esses problemas são resultado da intervenção do ocidente. E,
na Turquia, por exemplo, entendo que não há governo independente. E a Turquia
seria elemento central para implementar esse projeto, sobretudo por sua posição
estratégica.
Mas nada disso significa que o projeto tenha sido cancelado. Temos de manter na
cabeça a ideia de que o futuro dessa região depende de grandes projetos como
esse. Se todos continuarmos confinados em nossas respectivas fronteiras
nacionais, continuaremos a ser países pequenos, na escala global. Mesmo no caso
de países de grande território, como Turquia e Irã, não conseguirão manter-se
sozinhos, se não estruturarmos esses grandes projetos transfronteiras.
Ulusal Kanal (2): A partir de sua resposta, gostaria de passar a outra
questão, relacionada às guerras sectárias. Muita gente fala de guerra entre
sunitas e xiitas na região. Na sua opinião, os conflitos em curso podem ser
vistos como sectários por natureza?
Presidente Bashar al-Assad: Essa
questão foi levantada pela primeira vez em 1979, a partir da Revolução Iraniana,
que derrubou do poder um dos mais importantes aliados dos EUA na região. A
única solução foi apresentar aquela revolução como se fosse revolução xiita,
para que outras seitas se opusessem a ela. Nesses termos, inventaram a guerra
Irã-Iraque, que foi apoiada por alguns países do Golfo. Pouco depois, a
Fraternidade Muçulmana na Síria foi usada para o mesmo objetivo: para criar
oposições sectárias. Falharam nos dois casos, na primeira e na segunda
tentativa. Agora, três décadas depois, não há outra escolha, além de criarem
novamente a alternativa sectária. Por isso, voltam a levantar a mesma questão
agora.
No início da crise, as posições foram sectárias. Falharam, até agora. Se
tivessem sido bem sucedidos, o regime teria sido fragmentado, em resultado desse
conflito. O aspecto positivo disso tudo, é que a opinião pública vai-se
tornando cada dia mais consciente das ideologias sectárias. Mas há bolsões
sectários, alimentados pela ignorância, que sempre há, em qualquer sociedade.
Acredito que, agora, a essência do conflito não é sectária. O conflito hoje se
trava entre forças e estados que querem empurrar os povos para aqueles estágios
atrasados, e forças e estados que querem que os povos da região possam avançar.
Entre os que querem que os povos da região encontrem aqui uma pátria onde
possam viver livres, e outros que querem que aqui só haja estados-satélites,
exclusivamente para promover interesses daqueles estados e forças, não dos
povos da região. Ao mesmo tempo, aquelas forças são parte de uma luta internacional
de interesses conflitantes, da qual Síria e Turquia são parte. Essa luta está
sendo afetada por diferentes fatores que podem levar à fragmentação dessa
região, de modo a permitir que potências globais passem a controlar nosso
destino e nosso futuro.
Ulusal Kanal (2): Mesmo assim, fora da Síria, estão sendo adotadas
políticas oficiais baseadas em divisões e fragmentação baseadas em etnicidade e
por seitas religiosas. Por outro lado, vivemos e testemunhamos na Turquia o
processo do qual o senhor fala, especialmente depois que a República secular
foi criada e dirigida por Mustafá Gamal Ataturk. Mas, infelizmente, esses
estados e governos afastaram-se daquele projeto, que trocaram por projetos
religiosos e sectários. Como o senhor vê o futuro desses sistemas políticos?
Presidente Bashar al-Assad: Esses
sistemas políticos e establishments que buscam a divisão e a fragmentação
estão preparados para guerras que se arrastem por anos, mesmo séculos em nossa
região. Destruir tudo. Impedir qualquer prosperidade, qualquer desenvolvimento,
devolver à Idade Média vários aspectos de nossa vida. Isso é muito perigoso.
Quando penso em secularismo, falo em liberdade para todas as nossas religiões e
práticas religiosas. Nossa região é basicamente conservadora. Muitos são
religiosos e devem ser livres para praticar a religião que prefiram, para
cumprir seus rituais. Não devemos pensar nem por um momento, que haja alguma
contradição entre etnicidade e religião. Essa é a essência de nosso pensamento
sobre secularismo. Por isso, sempre trabalharei pela unificação dos nossos
povos nessa região.
Como já disse antes, não importa a natureza das nossas questões entre Síria e
Turquia, não se pode permitir que coisa alguma afete as relações entre nossos
povos, entre os sírios e os turcos. Porque na aproximação entre nossos povos
está a única garantia que temos para preservar a diversidade, que é a riqueza
de nossas sociedades.
Ulusal Kanal (1): Senhor presidente, o senhor acompanha de perto os
desenvolvimentos na Turquia?
Presidente Bashar al-Assad: É
normal que acompanhe. O que acontece na Turquia acontece em outros grandes
países, que ocupem posição estratégica e tudo que aconteça nesses países afeta
a situação síria. Ao mesmo tempo, há tantas semelhanças: a natureza do povo, as
emoções, a textura do tecido social na Turquia. Há muitas semelhanças. Repito:
o que aconteça na Turquia sempre terá impacto sobre a Síria, Por isso
entendemos que a estabilidade na Turquia é do mais alto interesse também da
Síria. E vice-versa. Se vocês sofrerem turbulências, nós seremos afetados. O
desafio, hoje, é convencer o atual governo turco, especialmente o
primeiro-ministro Erdogan, de que fogo na Síria queimará a Turquia.
Infelizmente, ele não vê essa realidade.
Ulusal Kanal (2): Quanto ao diálogo com a oposição, o senhor sempre
falou a favor de solução política e diálogo direto com a oposição. Há prazos e
limites [orig.red lines, linhas vermelhas] para esse diálogo?
Presidente Bashar al-Assad: A
única “linha vermelha” é qualquer intervenção estrangeira. Qualquer diálogo
terá de ser diálogo sírio, exclusivamente entre sírios. Não se admite nenhuma
intervenção estrangeira nesse diálogo. Exceto por esse limite, absolutamente
não há qualquer outro limite. Os sírios podem discutir tudo que queiram
discutir, qualquer tema, qualquer questão. A Síria é a pátria deles todos e
todos podem discutir o que queiram. Não há “linhas vermelhas”.
Ulusal Kanal (2): Muitos veículos de imprensa insistem em que a Síria
seria governada por uma ditadura alawita, interessada exclusivamente em
eliminar os sunitas. E até o assassinato de Mohammad Said Ramada al-Bouti entra
nesse quadro. Como o senhor responde a essas acusações?
Presidente Bashar al-Assad: Falamos
no início sobre a diversidade dessa região. E vivemos estáveis por muitas
décadas, sem qualquer problema interno. Como teríamos conseguido aquela
estabilidade, se não houvesse aqui um governo que é a imagem do próprio povo?
Seja onde for, se o governo é controlado por um ou mais grupos, contra outros
grupos sociais e, assim, não reflete as características de toda a população, o
governo não pode sobreviver. Nenhuma dessas acusações é verdadeira. Vivemos em
paz na Síria durante décadas, porque o governo sempre foi expressão da
diversidade do próprio povo.
Quanto à morte do Dr. al-Bouti [muçulmano sunita tradicionalista], é ridículo
acusar a Síria de qualquer envolvimento naquele assassinato. Essas acusações
são feitas pelos mesmos grupos que, antes, o acusavam, apenas poucos dias
antes, de ser porta-voz de autoridades religiosas, em assuntos religiosos. É
operação pensada para ferir a popularidade do Dr. al-Bouti entre os sírios e
entre seus seguidores no mundo muçulmano. Ele nunca teve autoridade nem foi
porta-voz de nenhuma autoridade. Jamais quis para ele qualquer autoridade.
Nunca quis ser ministro, oumoufti, nunca pediu dinheiro a ninguém e era
homem de vida simples. Seu único crime é que se pôs à frente do grupo de
religiosos [sunitas] ativamente envolvido no trabalho de promover divisões
sectárias entre os sírios. O Dr. al-Bouti estava à frente daquele grupo,
primeiro, por sua posição na Síria e no mundo muçulmano. Segundo, porque tinha
grande dificuldade para entender o que realmente está acontecendo.
Não há dúvida de que sem a concordância desses líderes religiosos é
praticamente impossível criar os conflitos religiosos, mas os líderes acabam
pagando com a própria vida, pelo sectarismo que pregam. Não há dúvidas de que o
Dr. al-Bouti tinha grandes defeitos, sobretudo na posição que adotou nessa
guerra. Não apoiava o Estado sírio e aliou-se aos estrangeiros. Por esses e
outros erros, pagou com a vida, numa luta religiosa que ele mesmo incentivou.
Mas outros líderes religiosos que não compactuam com o movimento para separar
os grupos religiosos também têm sido assassinados. Mais um deles foi
assassinado, há poucos dias, em Aleppo. Todos os líderes religiosos que não
preguem divisionismos e ensinem sobre tolerância religiosa, sobre moderação,
opõem-se a guerras religiosas, não as incitam.
Ulusal Kanal (1): Muito obrigado, senhor presidente, por essa entrevista
a Ulusal Kanal. Há mais alguma coisa que o senhor queira dizer ao povo turco?
Ulusal Kanal (2): Estamos agora num momento crucial da história. Falo da
Síria, da Turquia, de toda a região. Tudo que se vê acontecendo aqui tem alguns
elementos espontâneos e tem também elementos planejados fora daqui, e que foram
planejados com o objetivo de alcançar pleno controle de toda essa região. O que
acontece hoje é, na essência, similar ao que aconteceu há 100 anos, em termos
de projeto para redividir a região. Mas há 100 anos, nós aceitamos a redivisão
da região: uma parte para eles, uma parte para nós, uma parte para outros
interessados. Dessa vez, contudo, não podemos aceitar nenhum redesenho da
região que não considere os interesses dos próprios povos da região. O povo
terá de tomar suas decisões. Nós decidiremos. Infelizmente, vários governos da
região não veem as coisas desse modo. E aceitam ordens e agem em obediência ao diktat dos interesses de estados estrangeiros,
na maioria estados ocidentais.
Nos últimos tempos já se viram várias tentativas para semear a discórdia entre
os povos sírio e turco. Quero dizer que o trabalho que iniciamos há dez anos,
com o presidente Sezer deve ser retomado e continuado.
Refiro-me ao trabalho para construir solidariedade e amizade entre turcos e
sírios. Nada disso será jamais possível se não houver relações normais entre
nossos estados. Como já disse, a prosperidade de um dos estados da região
refletir-se-á nos demais. Pela mesma razão, o que haja de divisões e conflito
num de nossos países, respingará fatalmente sobre o outro.
Governos passam e é importante que passem. Por isso temos de construir projetos
que fortaleçam os povos da região, não projetos que só interessam a potências
estrangeiras. É a mensagem que tenho para o povo turco. [despedidas e fim da
entrevista]
[1] Partiya Karkerên Kurdistan; em português, Partido dos
Trabalhadores do Curdistão. O PKK tem um braço armado, Força de Defesa do Povo
(conhecido pela sigla HPG), listado como “organização terrorista” pela Turquia
e pelos EUA; até recentemente, também pela União Europeia, que o deslistou por
ordem judicial [NTs com informações de http://pt.wikipedia.org/wiki/Conflito_curdo-turco].